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A triste história de como surgiu o profissional de comunicação

Certo dia, me perguntei como teria sido a história de como surgiu o profissional de comunicação, especialmente o jornalista (minha formação). E curiosamente encontrei um verbete exatamente sobre isso em uma enciclopédia de estudos de mídia, que me concedeu toda a informação para este post.

Mas antes, sei que o título “A triste história” pode soar um pouco dramático, mas, como veremos, a história dos nossos colegas rumo à profissionalização foi cheia de lutas, contradições e desafios que persistem até hoje.

A ideia de elevar um trabalho de “ofício” para um “trabalho de conhecimento” tem raízes profundas na história ocidental. O próprio termo “profissão” vem da Idade Média, quando a divindade, a medicina e o direito eram as ocupações primárias para os cavalheiros da época. Essas três áreas são consideradas as “verdadeiras” profissões, servindo de medida para outras até hoje.

Ou vai me dizer que você discorda que um médico é mais importante que você?

Só que a organização das profissões como a entendemos hoje é mais recente, um produto do século XIX. Sociólogos veem as profissões como um conjunto de características ou uma maneira de organizar ocupações para aumentar seu poder. E sim, os trabalhadores da comunicação são profissionais nesse sentido mais moderno.

O segredo do profissional de comunicação: conhecimento e poder

A qualidade fundamental que define uma profissão é a sua relação com o conhecimento. Uma profissão se estabelece pelas práticas ligadas ao conhecimento. Assim, trabalhadores da comunicação se tornam profissionais ao criar padrões de trabalho, normas de produção, programas educacionais, associações e outras atividades típicas da área.

Pode parecer que são essas normas e estruturas que os tornam profissionais, mas a força real por trás disso são as ideias. Afinal, as profissões dependem de uma relação especial com o conhecimento que influencia suas interações com o Estado, instituições, outros grupos e a sociedade.

No campo da comunicação social, o jornalismo é um caso central na história da profissionalização, especialmente nos Estados Unidos, onde o trabalho de comunicação abraçou uma crença nacional no profissionalismo.

Organizar o trabalho da mídia profissionalmente teve grandes consequências para as relações de poder no trabalho e na maneira como o público é concebido e relacionado. E a profissionalização da comunicação tem implicações ainda maiores para as condições do conhecimento que afetam outras profissões que lidam com o saber.

Infelizmente, nas últimas décadas, profissionais de comunicação perderam parte de seu status com a reorganização do conhecimento em formatos digitais, e o destino dessa profissionalização fica cada dia mais incerto.

Origens profundas da Idade Média ao Iluminismo

Para entender a ascensão das profissões em geral, incluindo em comunicação, precisamos olhar para trás. Na Europa medieval, o conhecimento estava centrado na verdade divina, e o poder vinha da religião. O que as pessoas comuns sabiam sobre o mundo era considerado de uma ordem inferior.

Nesse contexto, as universidades foram um divisor de águas, estabelecendo locais independentes (e, em sua esfera, democráticos) para o conhecimento. Teologia e filosofia eram as ciências da época, e teólogos e filósofos possuíam conhecimento. Portanto, as universidades prepararam o terreno para que as profissões buscassem reconhecimento acadêmico.

E um pilar fundamental das profissões que emergiram das universidades foi o acesso ao conhecimento independente da verdade divina.

No Renascimento, pensadores começaram a enfatizar o fruto prático do conhecimento, levando ao movimento científico e à separação da filosofia. A ideia de que o conhecimento factual dependia da observação direta se fortaleceu. Isso influenciou a comunicação: o jornalismo, por exemplo, começou como a atividade de extrair histórias e fatos da vida social para produzir “bens úteis”.

Já no século XVII, Francis Bacon sugeriu a famosa frase em latim: “scientia potestas est” (o conhecimento é poder); ideia passou a justificar a busca por conhecimento por sua utilidade prática. A invenção da impressão com tipos móveis foi um exemplo de como invenções práticas “mudaram a face das coisas e o estado do mundo”.

Para Bacon, o conhecimento humano e o poder humano eram a mesma coisa, e a ciência moderna, seguindo seu axioma “pois o conhecimento em si é poder”, tirou o centro do saber de teólogos e filósofos. E até hoje essa visão de propósito baseada no conhecimento impulsiona muitos grupos ocupacionais na comunicação, especialmente jornalistas.

Outro valor central, que remonta aos séculos XVI e XVII na Europa, é a ideia de que a verdade era uma qualidade de “cavalheiros” (gentility).

A sociedade se dividia entre gentis e não-gentis. Cavalheiros eram considerados agentes capazes de sentir e relatar de forma confiável sobre a natureza e a sociedade. Mulheres, pobres e classes baixas eram vistos como não confiáveis. Embora a situação das mulheres tenha melhorado, a prática da comunicação, e especialmente o jornalismo, herdou uma perspectiva “gentil” sobre a obrigação de informar aqueles com menos acesso aos poderosos. Essa missão de serviço ajuda a sustentar a reivindicação de profissionalismo.

Por fim, a expertise também se tornou indispensável, crescendo durante o projeto Iluminista de acumular conhecimento.

Os enciclopedistas dividiram o conhecimento em campos dominados por especialistas. O conhecimento se especializou e sua operação se profissionalizou. Então, a divisão do trabalho intelectual tornou a comunicação pública mais importante. Sem ela, as elites poderiam reter o conhecimento “em detrimento de todos”.

Mais tarde, o jornalismo desenvolveu parte de seu status especial a partir desse impulso democrático de disseminar conhecimento. No entanto, já na era do Iluminismo, a crítica de que o trabalho dos enciclopedistas disseminava apenas conhecimento superficial (“raso”) já aparecia, uma crítica familiar aos jornalistas de hoje.

Aí começa um pouco da “tristeza”: a tensão entre profundidade e ampla disseminação.

Da guerra ao comércio e as novas profissões

As novas profissões surgiram da relação entre o ideal da ciência, a urgência de resolver problemas práticos e a organização social para aplicar o conhecimento científico. Ao contrário das antigas profissões baseadas na religião ou universidades, as novas surgiram de “zonas profanas” como a guerra, o comércio e o governo.

Elas reivindicaram não apenas competência técnica, mas também status moral. Estabeleceram exames e métodos de seleção para garantir padrões. Impuseram disciplina, principalmente pela pressão dos pares e respeito à tradição. O aprendizado mesclava prática e atitude, criando uma carreira previsível, como nas guildas medievais. E o acesso ao conhecimento especializado era controlado pelos altos custos das qualificações – não tão diferente de hoje também.

Essas profissões emergiram num contexto de:

  • Mercado
  • Problemas identificados
  • Soluções científicas
  • Ordem burocrática
  • Organização industrial
  • …e sempre com um pano de fundo de ordem moral.

O conhecimento adquirido se internalizava, como o “faro para a notícia” do jornalista e o zelo em servir o bem público.

A história da profissionalização onde a tristeza começa a aparecer

Do século XVIII ao XIX, desenvolveu-se um processo para as profissões emergentes, junto com uma sociologia das profissões. Sociólogos identificaram atividades típicas:

  • Agrupamento ocupacional: que eram ocupações com “trabalho cerebral” (não só manual) e que buscavam profissionalização; o status era importante.
  • Treinamento: surgiram métodos para selecionar membros, geralmente através de treinamento em conhecimento especializado.
  • Construção de associações formais: as novas profissões organizaram-se em associações com publicações, bibliotecas, reuniões.
  • Busca por reconhecimento externo: passaram a valorizar padrões e condições de entrada, às vezes via licenciamento.
  • Escrita de códigos de ética: que maraca a maturidade da profissão, reassegurava o público e garantia autonomia para a missão de serviço público.

Dessa maneira, ocupações puramente manuais não conseguiam se profissionalizar. E as profissões maduras possuíam a maioria desses traços. Portanto, as bases da profissionalização estavam firmes no final do século XIX, impulsionadas por ideias filosóficas, bases econômicas industriais e mudanças organizacionais.

No entanto, nem todos na “mídia” (termo surgido nos anos 1920) seguiram o mesmo caminho ou atingiram a plenitude da profissionalização.

Trabalhos ligados à publicidade, por exemplo, desenvolveram estruturas e ensino, mas o serviço a clientes comerciais não era visto como uma missão desinteressada. Artistas gráficos só desenvolveram um nível profissional de consciência social décadas depois, ao verem um papel de serviço público. Já vemos aqui uma fonte de “tristeza”: a tensão entre o interesse comercial e a missão pública.

Jornalismo rumo à profissão com suas lutas e compromissos

O jornalismo, em contraste, desenvolveu todos os traços de profissionalismo relativamente cedo no século XX. Era visto como uma forma de conhecimento. A ideia populista de servir leitores comuns forneceu uma missão pública pronta.

Historicamente, os jornais já atuavam como “cães de guarda”, protegendo o interesse público. E os editores e donos de jornais, cientes de seu poder como mediadores de conhecimento político, apoiaram a profissionalização de seus empregados (repórteres, redatores, editores) para reassegurar o público do serviço democrático que os jornais prestavam.

Essa, então, é outra fonte de tensão: a profissionalização dos empregados usada para legitimar o negócio dos empregadores. Vejamos como o jornalismo seguiu o roteiro da profissionalização explicado no tópico anterior…

Agrupamento Ocupacional

Uma nova estrutura ocupacional para jornalistas surgiu rapidamente na Era Progressista. Houve uma fusão entre o “correspondente” (mais literário, viajado, com acesso à alta sociedade) e o “catador de notícias” (trabalhador fabril, sob pressão de tempo, buscando escândalos para vender cópias) para formar o “jornalista“. Essa fusão de trabalho físico (coleta, digitação) e mental (“trabalho cerebral”) deu ao jornalismo a dimensão profissional.

Treinamento

Editores apoiaram a criação de sistemas de treinamento, impulsionando aulas e escolas universitárias de jornalismo. A Universidade de Missouri e a Universidade de Illinois foram umas das primeiras a estabelecer programas de graduação.

Associações

Editores também se organizaram primeiro (Associações de Imprensa estaduais e nacionais no final do século XIX). Os próprios trabalhadores do jornalismo também formaram associações, como o National Press Club (1908) e a fraternidade Sigma Delta Chi (1909), que mais tarde se tornaria a Sociedade de Jornalistas Profissionais. Curiosamente, apesar de as profissões evitarem sindicatos, os jornalistas formaram o American Newspaper Guild em 1933, durante a Grande Depressão.

Reconhecimento Externo

Historicamente, a imprensa lutou pela “liberdade de imprensa” (originalmente, liberdade de licenciamento). Contudo, no final do século XIX, as condições comerciais e industriais pareciam ameaçar esses ideais.

Ao contrário de outras profissões que prestavam serviços diretos e podiam cobrar por isso, os jornalistas não colhiam as mesmas recompensas financeiras. Os donos de jornais, sim, se beneficiavam das proteções legais. Para os jornalistas, o principal marcador de reconhecimento público era a assinatura (byline), que defendiam para conseguir maior remuneração e status.

Códigos de Ética

Associações de imprensa desenvolveram códigos de ética (como o de Missouri no século XIX). Houve debates públicos e na imprensa especializada sobre ética. A Sociedade Americana de Editores de Jornais adotou um código em 1923.

Assim, normas como precisão factual, neutralidade e objetividade surgiram. A objetividade, definida em contraste com o partidarismo original, talvez seja o padrão mais contestado no jornalismo. Essa contestação também contribui para a “tristeza”: a dificuldade em manter um padrão ideal.

Consequências e a tristeza da luta do profissional de comunicação

A profissionalização não aconteceu sem conflitos. As normas surgiram em diálogo com a relação do jornalismo com o negócio por trás dele e com o público. Editores como Hearst e Pulitzer, embora apoiassem alguns elementos da profissionalização, também perseguiam audiências e sucesso financeiro através do sensacionalismo.

Há uma tensão clara aqui: a busca por audiência vs. a missão de informar sobre temas sérios. H. L. Mencken chegou a defender que o jornalista precisava adaptar sua mensagem às “limitações morais” de seus clientes (o público), assim como um advogado adapta sua argumentação ao júri.

Enquanto buscavam independência ocupacional, os jornalistas equilibravam a necessidade de atrair leitores e gerar receita com a reivindicação de status profissional baseado em qualidades pessoais como autodisciplina, neutralidade e expertise como observadores (em vez de advogados de partido).

A missão de serviço público do jornalismo remonta à ideia do jornalismo como o “quarto poder” (fourth estate), surgida no século XVIII. Originalmente, a ideia era um cão de guarda dos poderes estabelecidos. Mais tarde, a Comissão Hutchins (1947) propôs uma missão mais ampla: a responsabilidade social de informar o público. O jornalismo investigativo dos anos 1960 e 70 (como no caso Watergate) abraçou essas metáforas.

No entanto, a relação com o público também sofreu com a profissionalização. Conforme o projeto avançava no século XX, os jornalistas se afastaram das classes trabalhadoras, sendo mais provável terem diplomas universitários. Essa educação e diferenciação de classe lhes deram mais status (um objetivo da profissionalização), mas diminuíram suas reivindicações de servir as mais amplas camadas do público. Ao contrário das profissões originais que podiam oferecer serviços pro bono, o jornalismo não tem uma base de clientes individual. Sua reivindicação de serviço público dependia de promover a democracia, uma base que se enfraqueceu à medida que os próprios jornalistas mudaram. Além disso, o conceito de público mudou de uma massa homogênea para mercados de consumo segmentados.

Outra dificuldade: a estrutura do jornalismo, especialmente a cobertura de editorias específicas, coloca jornalistas em contato direto com figuras de autoridade e especialistas, e não com o público que pretendem servir. Isso levanta suspeitas sobre sua missão de serviço e pode torná-los dependentes de fontes oficiais.

Sobrevivência do Jornalismo

Um ensaio de Francis E. Leupp no início do século XX, sobre o “declínio do poder da imprensa”, já listava causas que são considerados até hoje:

  • Consolidação da indústria
  • Surgimento de mídias mais baratas
  • Segmentação do conhecimento
  • Concorrência interna
  • Desequilíbrio entre operações de negócio e editoriais
  • A “mania universal da pressa”
  • Agregação de eventos em detrimento da interpretação
  • Vulnerabilidade das notícias à política dos donos
  • Exploração de sensacionalismo e escândalo
  • Falta de tempo para jornalistas se informarem lendo amplamente

Cada uma dessas causas reflete um conflito com a profissionalização. A expertise segmentada, que impulsiona a profissionalização, entra em conflito com o jornalismo, que mistura tarefas (coleta física e interpretação mental) e tem a responsabilidade social de tornar os eventos inteligíveis para os cidadãos. A análise de Leupp parece descrever as condições enfrentadas pelo jornalismo cem anos depois.

Era digital, nova crise e conflito interno

E depois disso tudo, a migração da mídia para formatos digitais trouxe mais desafios. O acesso à publicação e às assinaturas se “afrouxou”: qualquer um pode ter um site ou blog. O status do jornalista passou a depender mais de estar empregado por uma marca de notícias conhecida, mas ao mesmo tempo, o emprego tornou-se menos seguro.

Com a diminuição das audiências para a mídia tradicional, a autoridade da publicação impressa foi questionada, enquanto a publicação online enfrenta ceticismo.

Em vez de aumentar a expertise dos jornalistas, a mudança para plataformas digitais significou uma certa desqualificação do trabalho de notícias. O status passou a ser mais associado a habilidades digitais que as organizações de notícias demoraram a desenvolver, abrindo espaço para outros trabalhadores do conhecimento. Essas mudanças refletem transformações nas condições do conhecimento na era digital.

No fundo, a ascensão do profissionalismo colocou o trabalho de comunicação em conflito consigo mesmo. As normas profissionais, a busca por objetividade, a missão de serviço público muitas vezes colidem com as realidades do mercado, as pressões dos donos, a necessidade de atrair audiência e as mudanças tecnológicas e sociais.

É por isso que podemos falar em uma “triste história”: a jornada para se tornar profissional foi uma luta complexa, marcada por ideais nobres (servir a democracia, informar o público), mas também por compromissos com interesses comerciais, desafios em manter a relevância e o status, e uma tensão constante entre a teoria da profissão e a prática diária em um mundo em constante mudança.

O destino dessa luta ainda está em aberto no século XXI.

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